"Portanto, o que podemos concluir com a aula?
Hum...Tu, Carl, sintetiza o que falámos aqui hoje".
O rapaz não demorou muito a tomar a palavra,
confiante mais em si do que propriamente na sua resposta. Levantou-se.
"Hum...não sei se lhe posso dizer muito, mas
pelo que me parece o ponto mais importante tem que ver com a diferença da
energia psílica para as outras".
O professor parecia agradado, mas na sua cara
antevia-se que queria mais. Afinal de contas há grandes diferenças entre as
várias energias...Carl sentia que o professor sussurrava mentalmente algo como
'então que diferença é essa, meu rapaz?'.
"...Sendo que o psylium, a primeira fonte de
energia a ser descoberta fora do nosso planeta natal, não só tem uma potência
muito superior a qualquer outra, como, ao contrário do que se pensava quando se
descobriram os poços, parece ser, ao que tudo indica, inesgotável."
A reacção dos colegas foi positiva. Afinal de
contas não era todos os dias que crianças de nove ou dez anos falavam de física
e química. E Carl tinha referido o que a maioria deles gostaria também de ter a
capacidade de dizer.
"Sim, isso está tudo muito correcto.
Obrigado, Carl". Não esperava, na verdade, um discurso dissemelhante.
Depois, olhou em volta, para o seu auditório, um pequeno semi-círculo composto
por quatro filas, reparando sobretudo nas pequenas malinhas que cada um dos
alunos possuia por baixo das suas mesas. "Mas a meu ver não é de longe o
mais importante e espero que nenhum de vocês me leve a mal."
Carl sorriu. Não conhecia bem este professor. Só
tinha aparecido ali para dar uma espécie de curso rápido sobre as novas
energias. Nada que os seus pais não lhe tivessem explicado já. Ele próprio nem
se considerava um sabichão; pelo contrário, gostava de saber que estava errado,
às vezes, pois isso era sinal de que conseguia compreender o que estava certo.
Tinha alguns colegas que nunca chegariam a entender certas coisas.
Entretanto, o professor continuava. "Algum de
vocês quer dar um palpite sobre o que é para mim o mais interessante no psylium?".
Depois de um breve silêncio, a mão ingénua de um
aluno na última fila levantava-se.
Carl, ainda preso no seu raciocínio imaginava que
por muito que certos colegas se esforçassem haveria sempre um pormenor, um
conhecimento que não conseguiriam atingir e ficariam então fechados numa bolha.
A sua bolha de conforto. Quando pensava nesse tipo de pessoa, vinha-lhe
imediatamente à cabeça a cara de Cheng.
"Sim, diga, jovem discípula.", pedia o
professor, ainda assim, duvidando que algum destes jovens pudesse ler aquilo
que lhe ia na alma. Depois, confirmando no seu computador a disposição dos
alunos, "Você é a aluna...Cheng!"
Ao ouvir o pedido do educador, Carl olhou para
trás, surpreendido. Realmente era Cheng que tinha o bracinho no ar. Mas que?...Carl
sorriu novamente. O que iria sair dali...?
A rapariguinha já pouco mantinha dos traços dos
seus antepassados chineses, salvo o nome. O seu cabelo loiro enganaria qualquer
um que dúvidas tivesse. E, no entanto, todos os seus colegas a tratavam por
"China". Não gostava da alcunha. Mas também não gostava especialmente
dos seus pares. Ela normalmente não participava desta forma nas aulas. Não
por ser tímida, pois não era. Apenas nunca tinha tido vontade de falar. E, com
o passar do tempo, até os professores evitavam dirigir-se-lhe. Desta vez,
porém, sentia que tinha algo a dizer, embora se se pusesse a pensar nisso algum
tempo provavelmente não descortinaria a razão.
"Para mim...", começou, "o psylium
é diferente, porque pode ser parte de nós."
A expressão do professor alterou-se com o espanto.
Mas a rapariga continuava, séria.
"Se eu pensar na minha máscara, eu vejo que
ela é diferente de todas as outras."
Ouvia-se um burburinho de risos na escura sala. Carl
erguia uma sobrancelha. Na sua cabeça, sentia-se um vencedor. Sim, era o que já
esperava. Cheng não dava uma para a caixa: que as máscaras são diferentes, toda
a gente sabe. Mas depois, virando a cara e olhando para o professor, ele, como
jovem inteligente que era, via que a China tinha tocado no ponto. E isso
desagradou-o. Depois, aceitou-o como uma lição e, apesar de não ter compreendido
o conteúdo da questão, mais uma vez sorriu.
Então, o alarme de fim das actividades
extracurriculares soou.
"Obrigado, meninos e meninas. Na quinta
teremos então a nossa última aula. Espero entretanto que estejam a gostar
destas pequenas conversas. Acho que é melhor do que terem de fazer os trabalhos
de casa".
China já se levantara e saía pela porta,
despreocupada.
Quando finalmente as luzes da sala acenderam, o
professor reparou em dois estranhos encostados à parede do fundo. Estavam a
olhar para ele. Há quanto tempo estariam ali? Pareciam defensores legais ou
talvez vendedores. Sim, vendedores. Uma dupla interessante: um de ascendência
asiática, mais forte e rude e o outro, preto. Dirigiu-se para eles depois de
todos os alunos terem saído.
"Desculpem, mas estas aulas são privadas. Não
podem assistir. Além do mais, não quero comprar nada"
Os homens entreolharam-se e tiraram as suas
identificações. "Somos da S.I., Sr. Samson. Detective Yoshikawa e
agente Mbopa. Estamos a investigar a morte de Natascha Barnes e o seu nome deu
à baila."
Samson não pareceu totalmente surpreendido. Já
tinha ouvido rumores sobre a ineficiência da Segurança, mas isto parecia-lhe
absurdo. "Mas não têm já o marido na prisão?! O que é que isto tem que ver
comigo?"
Nenhum dos investigadores queria ter de admitir
que cometera um erro, mas o facto é que o Dr. Barnes estava inocente.
"Surgiram novas provas e gostaríamos de falar
consigo acerca da natureza da sua relação com a Sra. Barnes e com Miguel
Marquez."
Samson não teve hesitações na resposta "Oiça,
não sei o que pretendem saber. Fui colega do Dr. Barnes, e por isso, em
primeiro lugar, gostaria que me tratasse também por 'doutor'. Em segundo, a
Natascha era uma querida amiga minha e tenho muita pena que tenha sido vítima
de um crime tão horrendo. Finalmente, não conheço nenhum Miguel. Se quiserem
saber mais que isso, falem com o meu defensor."
Era precisamente uma atitude destas que os agentes
esperavam. Afinal de contas, o respeito pela autoridade nas colónias em geral,
e mais precisamente em Europa, não se comparavam com certas histórias que se
contavam do passado. Fidelis ponderava que provavelmente os detectives de
outrora já teriam dado uma berlaitada no focinho de alguém que, como Samson, lhes
falava num tom desafiante. Por outro lado, o crime não era assim tanto ou tão
violento que justificasse normalmente abordagens mais agressivas. Mas respeito
era respeito. E tinha acabado de pensar isto quando viu o punho do detective
passar por ele e se enfiar em cheio na cara de Samson encrustando os seus dois
dentes da frente na mão. O doutor foi logo ao chão.
"Mas que diabo!", vociferou Samson,
atarantado do golpe, chocado com a violência, cuspindo sangue. Cyrus puxou-o de
imediato, encostando-o à parede, paralizando-o com a sua expressão de filho da
puta e falando num tom baixo e irónico.
"Senhor 'doutor' Samson, se não se importa
então..." declarou Cyrus, enquanto o agente Mbopa lhe colocava as algemas.
"...gostaria que o senhor 'doutor' falasse com o seu DL para ir ter
consigo à esquadra, porque o senhor 'doutor' está preso."
Fidelis olhava para aquele homem já a entrar na
terceira idade e simplesmente não o conseguia entender. Era mais fácil ir atrás
do que o detective Yoshikawa fazia e talvez evitar pensar nisso. Falou pela
primeira vez.
"Sabe 'doutor', antes de passarmos aqui fomos
fazer uma visita ao seu apartamento...". E Cyrus continuou o fio de
diálogo do seu jovem colega "...e como ninguém nos respondia, resolvemos
entrar. Olha para mim, 'doutor!". Variava entre agarrar a cara de Samson e
dar-lhe uns estalos humilhantes nas bochechinhas medrosas. Obrigava-o a fitá-lo,
com aquela cara tornada ainda mais patética, com o buraco frontal na dentição. Samson
estava agora assustado. Será que eles...
"Sabes bem o que encontrámos, não sabes, seu
porco?"
Vermelho. A face de Henry Samson estava agora como
a de um tomate. Um tomate a suar como se não houvesse amanhã. "Vocês não
tinham o direito de entrar na minha casa." Mbopa parecia meio incomodado
com esta afirmação. Aliás, ele próprio tinha referido o mesmo na morada de
Samson. Mas se o detective dizia que era correcto invadir a propriedade, então
era a escolha acertada. Será que alguém lhes censuraria aquelas acções, principalmente
depois do que tinham descoberto? "'Doutor', ninguém vai querer saber
disso. São outros tempos. Mas digo-lhe o seguinte...se você me disser tudo o
que sabe sobre o que eu quero, aqueles videos nojentos que tem em casa serão
destruídos."
E Samson desistia. Consentia, levado pelo agente,
a sua cabeça matutando no quão bizarro um dia se pode tornar. Num momento, mais
alegre, quase epifânico e imediatamente a seguir a descida para os infernos da
humilhação e vergonha. E aquela rapariguinha? Chang ou Ching...tão bonita, uma
bonequinha meio despreocupada. Ai como se odiava nesse momento! As suas
fraquezas, a sua dependência. Talvez se não se tivesse afastado de Natascha,
uma mulher a sério...Mas já não podia pensar em nada. Mas antes de se
apagar, na cabeça de Samson, umas palavras repetiam-se. "...o psylium pode
ser parte de nós."