eles virão buscar-vos brevemente...

domingo, 17 de março de 2013

As Máscaras - IV


"Portanto, o que podemos concluir com a aula? Hum...Tu, Carl, sintetiza o que falámos aqui hoje".
O rapaz não demorou muito a tomar a palavra, confiante mais em si do que propriamente na sua resposta. Levantou-se.
"Hum...não sei se lhe posso dizer muito, mas pelo que me parece o ponto mais importante tem que ver com a diferença da energia psílica para as outras".
O professor parecia agradado, mas na sua cara antevia-se que queria mais. Afinal de contas há grandes diferenças entre as várias energias...Carl sentia que o professor sussurrava mentalmente algo como 'então que diferença é essa, meu rapaz?'.
"...Sendo que o psylium, a primeira fonte de energia a ser descoberta fora do nosso planeta natal, não só tem uma potência muito superior a qualquer outra, como, ao contrário do que se pensava quando se descobriram os poços, parece ser, ao que tudo indica, inesgotável."
A reacção dos colegas foi positiva. Afinal de contas não era todos os dias que crianças de nove ou dez anos falavam de física e química. E Carl tinha referido o que a maioria deles gostaria também de ter a capacidade de dizer.
"Sim, isso está tudo muito correcto. Obrigado, Carl". Não esperava, na verdade, um discurso dissemelhante. Depois, olhou em volta, para o seu auditório, um pequeno semi-círculo composto por quatro filas, reparando sobretudo nas pequenas malinhas que cada um dos alunos possuia por baixo das suas mesas. "Mas a meu ver não é de longe o mais importante e espero que nenhum de vocês me leve a mal."
Carl sorriu. Não conhecia bem este professor. Só tinha aparecido ali para dar uma espécie de curso rápido sobre as novas energias. Nada que os seus pais não lhe tivessem explicado já. Ele próprio nem se considerava um sabichão; pelo contrário, gostava de saber que estava errado, às vezes, pois isso era sinal de que conseguia compreender o que estava certo. Tinha alguns colegas que nunca chegariam a entender certas coisas. 
Entretanto, o professor continuava. "Algum de vocês quer dar um palpite sobre o que é para mim o mais interessante no psylium?".
Depois de um breve silêncio, a mão ingénua de um aluno na última fila levantava-se.
Carl, ainda preso no seu raciocínio imaginava que por muito que certos colegas se esforçassem haveria sempre um pormenor, um conhecimento que não conseguiriam atingir e ficariam então fechados numa bolha. A sua bolha de conforto. Quando pensava nesse tipo de pessoa, vinha-lhe imediatamente à cabeça a cara de Cheng.
"Sim, diga, jovem discípula.", pedia o professor, ainda assim, duvidando que algum destes jovens pudesse ler aquilo que lhe ia na alma. Depois, confirmando no seu computador a disposição dos alunos, "Você é a aluna...Cheng!"
Ao ouvir o pedido do educador, Carl olhou para trás, surpreendido. Realmente era Cheng que tinha o bracinho no ar. Mas que?...Carl sorriu novamente. O que iria sair dali...?
A rapariguinha já pouco mantinha dos traços dos seus antepassados chineses, salvo o nome. O seu cabelo loiro enganaria qualquer um que dúvidas tivesse. E, no entanto, todos os seus colegas a tratavam por "China". Não gostava da alcunha. Mas também não gostava especialmente dos seus pares. Ela normalmente não participava desta forma nas aulas. Não por ser tímida, pois não era. Apenas nunca tinha tido vontade de falar. E, com o passar do tempo, até os professores evitavam dirigir-se-lhe. Desta vez, porém, sentia que tinha algo a dizer, embora se se pusesse a pensar nisso algum tempo provavelmente não descortinaria a razão.
"Para mim...", começou, "o psylium é diferente, porque pode ser parte de nós."
A expressão do professor alterou-se com o espanto. Mas a rapariga continuava, séria.
"Se eu pensar na minha máscara, eu vejo que ela é diferente de todas as outras."
Ouvia-se um burburinho de risos na escura sala. Carl erguia uma sobrancelha. Na sua cabeça, sentia-se um vencedor. Sim, era o que já esperava. Cheng não dava uma para a caixa: que as máscaras são diferentes, toda a gente sabe. Mas depois, virando a cara e olhando para o professor, ele, como jovem inteligente que era, via que a China tinha tocado no ponto. E isso desagradou-o. Depois, aceitou-o como uma lição e, apesar de não ter compreendido o conteúdo da questão, mais uma vez sorriu.
Então, o alarme de fim das actividades extracurriculares soou.
"Obrigado, meninos e meninas. Na quinta teremos então a nossa última aula. Espero entretanto que estejam a gostar destas pequenas conversas. Acho que é melhor do que terem de fazer os trabalhos de casa".
China já se levantara e saía pela porta, despreocupada.
Quando finalmente as luzes da sala acenderam, o professor reparou em dois estranhos encostados à parede do fundo. Estavam a olhar para ele. Há quanto tempo estariam ali? Pareciam defensores legais ou talvez vendedores. Sim, vendedores. Uma dupla interessante: um de ascendência asiática, mais forte e rude e o outro, preto. Dirigiu-se para eles depois de todos os alunos terem saído.
"Desculpem, mas estas aulas são privadas. Não podem assistir. Além do mais, não quero comprar nada"
Os homens entreolharam-se e tiraram as suas identificações. "Somos da S.I., Sr. Samson. Detective Yoshikawa  e agente Mbopa. Estamos a investigar a morte de Natascha Barnes e o seu nome deu à baila."
Samson não pareceu totalmente surpreendido. Já tinha ouvido rumores sobre a ineficiência da Segurança, mas isto parecia-lhe absurdo. "Mas não têm já o marido na prisão?! O que é que isto tem que ver comigo?"
Nenhum dos investigadores queria ter de admitir que cometera um erro, mas o facto é que o Dr. Barnes estava inocente.
"Surgiram novas provas e gostaríamos de falar consigo acerca da natureza da sua relação com a Sra. Barnes e com Miguel Marquez."
Samson não teve hesitações na resposta "Oiça, não sei o que pretendem saber. Fui colega do Dr. Barnes, e por isso, em primeiro lugar, gostaria que me tratasse também por 'doutor'. Em segundo, a Natascha era uma querida amiga minha e tenho muita pena que tenha sido vítima de um crime tão horrendo. Finalmente, não conheço nenhum Miguel. Se quiserem saber mais que isso, falem com o meu defensor."
Era precisamente uma atitude destas que os agentes esperavam. Afinal de contas, o respeito pela autoridade nas colónias em geral, e mais precisamente em Europa, não se comparavam com certas histórias que se contavam do passado. Fidelis ponderava que provavelmente os detectives de outrora já teriam dado uma berlaitada no focinho de alguém que, como Samson, lhes falava num tom desafiante. Por outro lado, o crime não era assim tanto ou tão violento que justificasse normalmente abordagens mais agressivas. Mas respeito era respeito. E tinha acabado de pensar isto quando viu o punho do detective passar por ele e se enfiar em cheio na cara de Samson encrustando os seus dois dentes da frente na mão. O doutor foi logo ao chão.
"Mas que diabo!", vociferou Samson, atarantado do golpe, chocado com a violência, cuspindo sangue. Cyrus puxou-o de imediato, encostando-o à parede, paralizando-o com a sua expressão de filho da puta e falando num tom baixo e irónico.
"Senhor 'doutor' Samson, se não se importa então..." declarou Cyrus, enquanto o agente Mbopa lhe colocava as algemas. "...gostaria que o senhor 'doutor' falasse com o seu DL para ir ter consigo à esquadra, porque o senhor 'doutor' está preso."
Fidelis olhava para aquele homem já a entrar na terceira idade e simplesmente não o conseguia entender. Era mais fácil ir atrás do que o detective Yoshikawa fazia e talvez evitar pensar nisso. Falou pela primeira vez.
"Sabe 'doutor', antes de passarmos aqui fomos fazer uma visita ao seu apartamento...". E Cyrus continuou o fio de diálogo do seu jovem colega "...e como ninguém nos respondia, resolvemos entrar. Olha para mim, 'doutor!". Variava entre agarrar a cara de Samson e dar-lhe uns estalos humilhantes nas bochechinhas medrosas. Obrigava-o a fitá-lo, com aquela cara tornada ainda mais patética, com o buraco frontal na dentição. Samson estava agora assustado. Será que eles...
"Sabes bem o que encontrámos, não sabes, seu porco?"
Vermelho. A face de Henry Samson estava agora como a de um tomate. Um tomate a suar como se não houvesse amanhã. "Vocês não tinham o direito de entrar na minha casa." Mbopa parecia meio incomodado com esta afirmação. Aliás, ele próprio tinha referido o mesmo na morada de Samson. Mas se o detective dizia que era correcto invadir a propriedade, então era a escolha acertada. Será que alguém lhes censuraria aquelas acções, principalmente depois do que tinham descoberto? "'Doutor', ninguém vai querer saber disso. São outros tempos. Mas digo-lhe o seguinte...se você me disser tudo o que sabe sobre o que eu quero, aqueles videos nojentos que tem em casa serão destruídos."
E Samson desistia. Consentia, levado pelo agente, a sua cabeça matutando no quão bizarro um dia se pode tornar. Num momento, mais alegre, quase epifânico e imediatamente a seguir a descida para os infernos da humilhação e vergonha. E aquela rapariguinha? Chang ou Ching...tão bonita, uma bonequinha meio despreocupada. Ai como se odiava nesse momento! As suas fraquezas, a sua dependência. Talvez se não se tivesse afastado de Natascha, uma mulher a sério...Mas já não podia pensar em nada. Mas antes de se apagar, na cabeça de Samson, umas palavras repetiam-se. "...o psylium pode ser parte de nós."

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