eles virão buscar-vos brevemente...

domingo, 17 de março de 2013

As Máscaras - IV


"Portanto, o que podemos concluir com a aula? Hum...Tu, Carl, sintetiza o que falámos aqui hoje".
O rapaz não demorou muito a tomar a palavra, confiante mais em si do que propriamente na sua resposta. Levantou-se.
"Hum...não sei se lhe posso dizer muito, mas pelo que me parece o ponto mais importante tem que ver com a diferença da energia psílica para as outras".
O professor parecia agradado, mas na sua cara antevia-se que queria mais. Afinal de contas há grandes diferenças entre as várias energias...Carl sentia que o professor sussurrava mentalmente algo como 'então que diferença é essa, meu rapaz?'.
"...Sendo que o psylium, a primeira fonte de energia a ser descoberta fora do nosso planeta natal, não só tem uma potência muito superior a qualquer outra, como, ao contrário do que se pensava quando se descobriram os poços, parece ser, ao que tudo indica, inesgotável."
A reacção dos colegas foi positiva. Afinal de contas não era todos os dias que crianças de nove ou dez anos falavam de física e química. E Carl tinha referido o que a maioria deles gostaria também de ter a capacidade de dizer.
"Sim, isso está tudo muito correcto. Obrigado, Carl". Não esperava, na verdade, um discurso dissemelhante. Depois, olhou em volta, para o seu auditório, um pequeno semi-círculo composto por quatro filas, reparando sobretudo nas pequenas malinhas que cada um dos alunos possuia por baixo das suas mesas. "Mas a meu ver não é de longe o mais importante e espero que nenhum de vocês me leve a mal."
Carl sorriu. Não conhecia bem este professor. Só tinha aparecido ali para dar uma espécie de curso rápido sobre as novas energias. Nada que os seus pais não lhe tivessem explicado já. Ele próprio nem se considerava um sabichão; pelo contrário, gostava de saber que estava errado, às vezes, pois isso era sinal de que conseguia compreender o que estava certo. Tinha alguns colegas que nunca chegariam a entender certas coisas. 
Entretanto, o professor continuava. "Algum de vocês quer dar um palpite sobre o que é para mim o mais interessante no psylium?".
Depois de um breve silêncio, a mão ingénua de um aluno na última fila levantava-se.
Carl, ainda preso no seu raciocínio imaginava que por muito que certos colegas se esforçassem haveria sempre um pormenor, um conhecimento que não conseguiriam atingir e ficariam então fechados numa bolha. A sua bolha de conforto. Quando pensava nesse tipo de pessoa, vinha-lhe imediatamente à cabeça a cara de Cheng.
"Sim, diga, jovem discípula.", pedia o professor, ainda assim, duvidando que algum destes jovens pudesse ler aquilo que lhe ia na alma. Depois, confirmando no seu computador a disposição dos alunos, "Você é a aluna...Cheng!"
Ao ouvir o pedido do educador, Carl olhou para trás, surpreendido. Realmente era Cheng que tinha o bracinho no ar. Mas que?...Carl sorriu novamente. O que iria sair dali...?
A rapariguinha já pouco mantinha dos traços dos seus antepassados chineses, salvo o nome. O seu cabelo loiro enganaria qualquer um que dúvidas tivesse. E, no entanto, todos os seus colegas a tratavam por "China". Não gostava da alcunha. Mas também não gostava especialmente dos seus pares. Ela normalmente não participava desta forma nas aulas. Não por ser tímida, pois não era. Apenas nunca tinha tido vontade de falar. E, com o passar do tempo, até os professores evitavam dirigir-se-lhe. Desta vez, porém, sentia que tinha algo a dizer, embora se se pusesse a pensar nisso algum tempo provavelmente não descortinaria a razão.
"Para mim...", começou, "o psylium é diferente, porque pode ser parte de nós."
A expressão do professor alterou-se com o espanto. Mas a rapariga continuava, séria.
"Se eu pensar na minha máscara, eu vejo que ela é diferente de todas as outras."
Ouvia-se um burburinho de risos na escura sala. Carl erguia uma sobrancelha. Na sua cabeça, sentia-se um vencedor. Sim, era o que já esperava. Cheng não dava uma para a caixa: que as máscaras são diferentes, toda a gente sabe. Mas depois, virando a cara e olhando para o professor, ele, como jovem inteligente que era, via que a China tinha tocado no ponto. E isso desagradou-o. Depois, aceitou-o como uma lição e, apesar de não ter compreendido o conteúdo da questão, mais uma vez sorriu.
Então, o alarme de fim das actividades extracurriculares soou.
"Obrigado, meninos e meninas. Na quinta teremos então a nossa última aula. Espero entretanto que estejam a gostar destas pequenas conversas. Acho que é melhor do que terem de fazer os trabalhos de casa".
China já se levantara e saía pela porta, despreocupada.
Quando finalmente as luzes da sala acenderam, o professor reparou em dois estranhos encostados à parede do fundo. Estavam a olhar para ele. Há quanto tempo estariam ali? Pareciam defensores legais ou talvez vendedores. Sim, vendedores. Uma dupla interessante: um de ascendência asiática, mais forte e rude e o outro, preto. Dirigiu-se para eles depois de todos os alunos terem saído.
"Desculpem, mas estas aulas são privadas. Não podem assistir. Além do mais, não quero comprar nada"
Os homens entreolharam-se e tiraram as suas identificações. "Somos da S.I., Sr. Samson. Detective Yoshikawa  e agente Mbopa. Estamos a investigar a morte de Natascha Barnes e o seu nome deu à baila."
Samson não pareceu totalmente surpreendido. Já tinha ouvido rumores sobre a ineficiência da Segurança, mas isto parecia-lhe absurdo. "Mas não têm já o marido na prisão?! O que é que isto tem que ver comigo?"
Nenhum dos investigadores queria ter de admitir que cometera um erro, mas o facto é que o Dr. Barnes estava inocente.
"Surgiram novas provas e gostaríamos de falar consigo acerca da natureza da sua relação com a Sra. Barnes e com Miguel Marquez."
Samson não teve hesitações na resposta "Oiça, não sei o que pretendem saber. Fui colega do Dr. Barnes, e por isso, em primeiro lugar, gostaria que me tratasse também por 'doutor'. Em segundo, a Natascha era uma querida amiga minha e tenho muita pena que tenha sido vítima de um crime tão horrendo. Finalmente, não conheço nenhum Miguel. Se quiserem saber mais que isso, falem com o meu defensor."
Era precisamente uma atitude destas que os agentes esperavam. Afinal de contas, o respeito pela autoridade nas colónias em geral, e mais precisamente em Europa, não se comparavam com certas histórias que se contavam do passado. Fidelis ponderava que provavelmente os detectives de outrora já teriam dado uma berlaitada no focinho de alguém que, como Samson, lhes falava num tom desafiante. Por outro lado, o crime não era assim tanto ou tão violento que justificasse normalmente abordagens mais agressivas. Mas respeito era respeito. E tinha acabado de pensar isto quando viu o punho do detective passar por ele e se enfiar em cheio na cara de Samson encrustando os seus dois dentes da frente na mão. O doutor foi logo ao chão.
"Mas que diabo!", vociferou Samson, atarantado do golpe, chocado com a violência, cuspindo sangue. Cyrus puxou-o de imediato, encostando-o à parede, paralizando-o com a sua expressão de filho da puta e falando num tom baixo e irónico.
"Senhor 'doutor' Samson, se não se importa então..." declarou Cyrus, enquanto o agente Mbopa lhe colocava as algemas. "...gostaria que o senhor 'doutor' falasse com o seu DL para ir ter consigo à esquadra, porque o senhor 'doutor' está preso."
Fidelis olhava para aquele homem já a entrar na terceira idade e simplesmente não o conseguia entender. Era mais fácil ir atrás do que o detective Yoshikawa fazia e talvez evitar pensar nisso. Falou pela primeira vez.
"Sabe 'doutor', antes de passarmos aqui fomos fazer uma visita ao seu apartamento...". E Cyrus continuou o fio de diálogo do seu jovem colega "...e como ninguém nos respondia, resolvemos entrar. Olha para mim, 'doutor!". Variava entre agarrar a cara de Samson e dar-lhe uns estalos humilhantes nas bochechinhas medrosas. Obrigava-o a fitá-lo, com aquela cara tornada ainda mais patética, com o buraco frontal na dentição. Samson estava agora assustado. Será que eles...
"Sabes bem o que encontrámos, não sabes, seu porco?"
Vermelho. A face de Henry Samson estava agora como a de um tomate. Um tomate a suar como se não houvesse amanhã. "Vocês não tinham o direito de entrar na minha casa." Mbopa parecia meio incomodado com esta afirmação. Aliás, ele próprio tinha referido o mesmo na morada de Samson. Mas se o detective dizia que era correcto invadir a propriedade, então era a escolha acertada. Será que alguém lhes censuraria aquelas acções, principalmente depois do que tinham descoberto? "'Doutor', ninguém vai querer saber disso. São outros tempos. Mas digo-lhe o seguinte...se você me disser tudo o que sabe sobre o que eu quero, aqueles videos nojentos que tem em casa serão destruídos."
E Samson desistia. Consentia, levado pelo agente, a sua cabeça matutando no quão bizarro um dia se pode tornar. Num momento, mais alegre, quase epifânico e imediatamente a seguir a descida para os infernos da humilhação e vergonha. E aquela rapariguinha? Chang ou Ching...tão bonita, uma bonequinha meio despreocupada. Ai como se odiava nesse momento! As suas fraquezas, a sua dependência. Talvez se não se tivesse afastado de Natascha, uma mulher a sério...Mas já não podia pensar em nada. Mas antes de se apagar, na cabeça de Samson, umas palavras repetiam-se. "...o psylium pode ser parte de nós."

sexta-feira, 8 de março de 2013

As Máscaras - III

excertos dos relatórios oficiais da Segurança Interna
processo nº 3129

cidadão: Dr. Jeff Barnes
local: 2ª esquadra de New Atlanta
ass: agente Fidelis Mbopa
responsável: agente Cyrus Yoshikawa, Detective


Pós-interrogatório.                                                                                        Data: 04/01/2121

A testemunha não varia a versão apresentada imediatamente aos primeiros agentes no local. Mantém-se decidido a declarar que chegou a casa deparando-se com a roupa espalhada pelas áreas do corredor e sala. Diz ainda que o seu sistema de música estava ligado, passando música antiga do início do século passado, a seu ver de uma banda de rock, que o próprio indivíduo classificou como "inaudível". Afirma que suspeitou que tinha apanhado a mulher durante um episódio de infidelidade e que se encontrava algo confuso. A relação dos dois parece ter arrefecido há já vários anos. Confessa que ficou em choque ao entrar no quarto, demorando algum tempo até perceber que se tratava efectivamente da sua mulher. Finalmente, diz que sentiu um barulho vindo de fora da janela do quarto e que avistou alguém afastando-se correndo do seu prédio, não conseguindo explicitar pormenores acerca desse suspeito. Quando confrontado com a pergunta sobre quem achava que poderia ter cometido um acto destes contra a sua mulher, ainda que numa primeira fase não se lembrasse de nenhum possível culpado, acabou por dar dois nomes: Henry Samson e Miguel Marquez, cidadãos que suspeita poderem estar romanticamente ligados à falecida.
Enquanto se aguardam os resultados do laboratório e seguimos a linha destes dois novos cidadãos intervenientes, o cidadão Barnes é para já considerado o principal suspeito, recomendando-se a sua detenção.


Historial

Jeffrey Kuzmeny Barnes nasceu a 21 de Agosto de 2071. Casado Viúvo e sem filhos. Fez a sua formação em parte na Academia de Ciências de Monróvia, Libéria, que concluiu em Marte, mais precisamente em Port Ferrell, na 2ª Universidade Colonial, para onde se refugiou em 2089 depois das Chamas em África. Formou-se em Geologia com excelentes credenciais acabando por viajar para Nova Atlanta há treze anos atrás quando se descobriram os grandes poços de Psilyum e é actualmente ainda o geólogo responsável pelas expedições decorrentes ao interior dos poços. Casou-se com Natascha Anne Duschamps três meses depois de ter chegado e dois meses depois de a conhecer. Não tem quaisquer antecedentes criminais nem quaisquer notas de suspeita, sendo que é considerado pelos seus colegas e amigos como uma pessoa calma e ponderada. Não tem quaisquer parentes vivos. Os seus hobbies incluem a leitura e o desenho de labirintos para o jornal diário.
Nota: É um indivíduo com um conhecimento e inteligência muito elevada.


Notas pessoais do caderno do agente Mbopa

15/01/2121

O doutor tem-se mantido calmo e reservado durante os dias de detenção. Nos primeiros dias mantinha-se sentado de frente para uma parede enquanto parecia escrevinhar no ar. Pensámos tratar-se de uma táctica qualquer para apresentar uma possível defesa enquanto portador de insanidade temporária. Porém, nem ele nem o seu defensor legal pediram um relatório psicológico para tal. Nos dias seguintes pareceu mais activo, solicitando papel e lápis, onde rabiscava qualquer coisa, sem que os guardas pudessem perceber de que se tratava. Quando estes se aproximavam da cela, o doutor colocava-se imediatamente perto da sanita, provavelmente preparando-se para deixar cair lá o papel e puxar o autoclismo caso um deles lá entrasse.

Trish Barber, uma vizinha dos Barnes avançou num depoimento que tinha visto o doutor entrar no prédio cerca de 45 minutos antes da hora que ele atribuira. O relatório do médico legista refere que o crime não acontecera há mais de uma hora antes da polícia chegar ao local. As peças parecem encaixar todas...apesar de achar que alguém tão inteligente arranjaria forma mais simples de cometer um crime, esconder o cadáver e nunca ser apanhado. Poderia simplesmente, como já aconteceu antes, deixar o corpo numa zona mais iluminada do bairro, onde se acumulam centenas de Galinas, prontos para retalhar qualquer bocado de carne. Ou telvez lhe tenha saído mesmo um parafuso e quisesse ser apanhado.


17/01/2121

O processo deu subitamente uma reviravolta inesperada. Por onde começar? Em primeiro lugar, foram efectivamente encontradas na cena do crime impressões digitais e vestígios de ADN do cidadão Marquez, indicado como uma pessoa de interesse no processo por parte de Barnes. Também a arma (ou uma das armas) do crime foi encontrada num caixote de lixo numa das ruas adjacentes à urbanização dos Barnes e também ela tinha, para além do sangue da Sra. Barnes, impressões parciais de Marquez.
Ao mesmo tempo, foi estabelecido um álibi para o doutor que contraria as informações dadas pela senhorita Barber, a sua vizinha; na altura, Barnes encontrava-se ainda no trabalho, tendo saído mais cedo que o habitual, por volta das 17h. A cidadã Barber justificou que estava ainda a alguma distância do indivíduo e que ao longe se torna mais difícil de ver, principalmente usando a sua máscara; no entanto, afirma, que se não era o doutor, era alguém muito parecido e que até a máscara dele era semelhante. Tenho receio de que esta vizinha esteja agora a tentar forçar uma justificação de um possível perjúrio, depois de ser apanhada a mentir...Ou será que podia ser efectivamente alguém a fazer-se passar por Barnes? Poderão o doutor ou a mulher ter irritado alguém que não deviam?
Segue-se uma visita ao apartamento de Miguel Marquez e também possivelmente ao de Henry Samson; já as devíamos ter feito logo quando os nomes nos foram dados, mas para dizer a verdade, ninguém acreditava por momentos que o doutor pudesse estar inocente.
O Detective Yoshikawa, responsável pelo processo, acordou em levar-me com ele para estas visitas. Tratar-se-à portanto do meu primeiro caso no terreno. São os casos de homicídios que normalmente trazem mais visibilidade ao departamento de Segurança Interna e espero fazer um bom trabalho. É uma honra trabalhar com o Detective e devo aproveitar esta oportunidade, ainda que não goste especialmente do seu método de trabalho e ele tenha a pior reputação de sempre no departamento em matéria de violência. Mas o que é facto é que em breve será o detective reformado mais novo de sempre em Nova Atlanta e tornar-se-à uma lenda ainda mais significativa para futuros agentes.
Quanto ao doutor Jeff Barnes, será libertado dentro de muito em breve, embora ele não tenha dado mostras de grande satisfação com a notícia.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

sem título (~_~)



bem que podia ser monge
aquele que teu olhar indiferente
cativa desde longe
e nem mesmo que o tente
permitiriam conselhos sábios
resistir aos teus lábios.

é perante
essa brancura deslumbrante
enfrentando a tua beleza
que sucumbe, enfim, a presa.

                                                         

                                                                (para S)

sábado, 26 de janeiro de 2013

As Máscaras - II

O detective Cyrus Yoshikawa nem se esforçava para impedir que da sua mão gasta e dura caísse algum dos amendoins salgados que havia retirado da tigela mais nojenta das colónias lunares. Sentava-se ao balcão do seu bar do costume, o sujo e mal frequentado Toto. Sempre se entendera com Tomaz, o dono, desde o dia em que impedira um homicídio no local, embora não se orgulhasse de ter pago com o preço de outro homicídio. 
Nesse dia, havia já treze anos, recebera uma chamada da esquadra a altas horas da noite e, como ficava perto da sua área de residência, resolveu tomar ele conta da ocorrência. Ainda do exterior do bar verificara logo pela gritaria que não era uma mera discussão. Parecia tratar-se mais de uma espécie de ajuste de contas. Entrou com um pontapé na porta e impôs a sua presença ordenando ao suspeito, uma figura de arma em riste, que ficasse quieto e largasse a sua arma para o chão. "Não é preciso que ninguém se magoe!". Mas o homem parecia hesitante, não sabendo o que fazer. Tinha a sua máscara colocada, portanto era impossível saber a sua verdadeira expressão para lá daquela que se via, monstruosa. Mas Cyrus sentia o seu medo através dos movimentos que fazia com o corpo. "Deite a arma para o chão! Já!". Nesse momento o nervoso suspeito pareceu resolver-se, quem sabe antevendo a humilhação da prisão, e virou a arma, uma espécie de revólver, um tipo de arma que não se via há mais de trinta anos, na direcção de Tomaz, atrás do balcão.
Cyrus não era já um polícia iniciante. Há muito que não congelava em situações destas. Não era como da primeira vez que tivera de disparar sobre alguém... Ele aprendia com os erros e errava já muito pouco, principalmente com a sua Tenten9, a arma de serviço de todos os polícias daquela pequena cidade. E pronto, dois relâmpagos brilhando pelo cano da arma na direcção do peito e um terceiro que furou a máscara do bandido, caindo desamparado no chão.
Depois de confirmar que estava incapacitado, Cyrus dirigiu-se ao corpo do suspeito, retirou-lhe a máscara, e para sua surpresa verificou que era apenas um miúdo. Um miúdo da idade que Josh, o seu filho, teria. Não evitou sentir-se destroçado pelo que fizera, enquanto olhava para os olhos ausentes e vítreos do rapaz e para o sangue espesso, provavelmente misturado com massa cerebral, a escorrer-lhe de um orifício no crâneo. Da máscara, a tez azulada do psylium ia desaparecendo, substituindo o horrível e falso rosto pela borracha baça e inofensiva. Ao mesmo tempo, Tomaz agradecia-lhe por lhe ter salvo a vida, agarrado à cruz no seu peito, benzendo-se interminavelmente, em seu nome e da sua família, mãe, mulher e todos os filhos, até o pequenito Aran.
Entretanto tornara-se amigo de Tomaz e aparecia todas as semanas, às vezes mais que um dia, no Toto. Era hábito pedir um copo de pulley e ficar meio ausente pensando em todas as tristezas da sua vida.
Hoje, porém, ia já no quarto copo. "Vinte anos...", murmurava para ele próprio. Ao seu lado repousava a sua máscara. Já não aguentava usá-la...aquela tez pálida de pele, as presas compridas e os círculos amarelos nos olhos, tudo o levava ao desespero quando pensava demasiado nisso. Contava os dias virtuais que lhe restavam para a sua reforma e respectiva saída da cidade. Todos os colegas que haviam saído para Rosaprima, a ilha dos sonhos, lhe contavam maravilhas acerca do sítio. Apenas faltava o sol, de resto era fabuloso. Desde que não tivesse de usar a puta da máscara até podia ir para o inferno, mas praia e descanso eram um bónus que ele agradecia. E sol, já não o havia em lado nenhum.
Primeiro, no entanto, tinha de se reformar e para isso tinha que resolver mais dois casos. Apenas mais dois casos. Não achava que pudesse aguentar muito mais tempo daquilo. Ter de estar ali a fingir-se de sério. Precisava mesmo da puta da reforma? Da praia e de regalar a vista com as solteiras de Rosaprima a passear-se na avenida marginal? Tudo merdas que lhe tinham metido na cabeça! E depois nunca se sabe quanto tempo demora a resolver o caso. Uns bons anos antes tinha havido um que lhe dera uma trabalheira, um triplo homicídio sem quaisquer pistas. Um verdadeiro quebra-cabeças que acabou por ser arquivado, depois de dois anos de investigação. Olhando para trás, era um dos dois casos que lhe tinham ficado atravessados como espinhas na garganta. Pois bem, se o próximo caso demorasse tanto tempo, estava tudo fodido. Se calhar era altura de mandar tudo às urtigas. Mandá-los a todos para donde vieram. Neste mundo toda a inocência tinha sido tapada com uma pazada de merda e era dessa escuridão decomposta e malcheirosa que Cyrus queria sair, de uma maneira ou de outra. Vivia a um pequeno instante da loucura mas agora deixava-se levar. Foda-se, que miséria! Sentia a coronha da sua Tenten e olhava à sua volta por onde começar. "Vai tudo pó caralho!" repetia na sua cabeça. Era a contagem decrescente 3, 2, 1...
"Yoshi! Telefone para ti."
"Agora?! Caralho, será ela outra vez?" pensava para si. Um telefonema por ano já era suficiente. Dois no mesmo dia era insuportável. Ao levantar-se para ir ao telefone ainda sentia em si olhares de todos aqueles criminosos de meia tigela, pessoas que não lhe diziam respeito. Afinal de contas era um detective de Homicídios, mas nem os treze anos de intimidade no bar deixavam os habituais clientes descansados. E ele sentia-se bem com isso. Tomaz era quem lhe interessava ali.
Pegou no auscultador. "Detective? Aqui é Danza. Temos um caso”. Óptimo, reflectiu Cyrus. A viagem final começava agora. Depois deste a reforma é fácil. "Muito bem, Ed. Onde queres que vá ter?" "Área Oeste, praça 3. Temos agentes à porta. Eles depois indicam-lhe o caminho."
Olhava para Tomaz. O resto teria de esperar, mas as probabilidades eram que não por muito tempo. "Tomaz, dá-me uma garrafa de água, por favor." Decidiu ir a correr. Saiu do bar ainda com a máscara mal colocada, pois, ao mesmo tempo que corria, chupava da garrafa enormes quantidades de água. Tinha de tirar do sistema aquele àlcool todo. Apresentar-se ao serviço naquele estado dar-lhe-ia no mínimo uma suspensão, mas se o chefe decidisse ser rigoroso bem que podia dizer adeus a Rosaprima.
Nas ruas, àquela hora, não se via ninguém. Eram quatro horas da manhã e nem o facto de não haver sol, e portanto diferença prática entre dia e noite, impedia que no Quartier as pessoas estivessem a casa. Aliás, naquele bairro quem sai à rua em horário nocturno sabia que se arriscava a desaparecer, mesmo protegidos com as respectivas máscaras e bastões de rua.
Entretanto à volta do Detective os rugidos iam-se aproximando, mas Cyrus não os ouvia. Estava com a cabeça noutro lugar, pensando em Josh, o seu filho, e Marco, o miúdo que matara. Já largara a garrafa há vinte metros, mas metade da sua cabeça ainda estava a descoberto. Avançava pelas ruas rapidamente, devido aos sensores das máscaras, que lhe permitiam ver no escuro, transformando num dia acinzentado o breu que envolvia todo o satélite. No entanto, qualquer o tipo de Galina que o perseguia, estaria a fazê-lo cerca de três vezes mais rápido que um humano.
Foi por sorte que uma das esquinas que Cyrus tinha um edifício com vidros espelhados. E ainda assim demorou alguns momentos até se aperceber de que se tratava do seu reflexo e da gravidade da situação em que estava metido. O circuito de psylium da máscara só funciona em pleno contacto com o rosto. Eles já estavam demasiado perto talvez. Agora sim ouvia atrás dele o raspar intimidante das suas garras compridas na poeira. Fechando os olhos, puxou a máscara para baixo, virando-se na direcção dos ruídos o mais rápido que pôde, sussurrando em agonia “Deus, foda-se”.
Ao adaptar-se à sua face as partículas de psylium reagiram, brilhando efusivamente, dando cor e padrão à máscara. Soaram guinchos lancinantes, uivos dolorosos de desespero... E quando voltou a abrir os olhos estava já sozinho. Ficou quieto ainda a digerir o que se tinha passado. "Estúpido...muito estúpido...". Mais uma vez a sua máscara fazia aquilo para que tinha sido criada, mas Cyrus detestava ter de depender dela desta forma.
No terceiro andar do prédio o sargento Edouard Danza tirava fotografias ao cadáver, quando Cyrus chegou ao pé dele. "Foda-se! Que aconteceu aqui?" O quarto ainda estava na mesma, apenas o encarnado era menos vivo e não escorregava, secado com o tempo. "Natasha Barnes. Idade 41." O detective não conseguia impedir sentir um desconforto ao ver o delgado corpo nú da víctima. Era uma bela mulher. Quem a matou deve ter-se divertido muito a estragá-la. "Crime passional é o nosso melhor palpite. Esta violência...Aparentemente não falta nada, a porta também não foi arrombada." Cyrus ia observando o quarto, caminhando pela cena do crime enquanto ouvia as explicações de Danza. "O marido diz que quando chegou a casa já encontrou a mulher assim e que viu um suspeito a fugir na rua." Cyrus parou à frente de Danza. Era o tipo de caso mais frequente, embora nunca tivesse visto um tão sádico. Um gajo passa-se e mata a mulher. Mas ele gostava de ficar com estes casos, antes a ele que a outro detective. "Já levaram para a esquadra esse filho da puta?"

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

a espécie de biografia do meu pai

Estava a fazer uma leitura de revisão do livro que o meu pai tem escrito sobre as suas memórias e deparei-me com um segmento que, por me dizer respeito, não deixou de me emocionar. Achei interessante por isso incluir aqui esse excerto, já agora para avaliarem um pouco a escrita do meu pai. Espero que ele não se importe com esta pequena fuga, já que o livro está ainda em desenvolvimento. Diz assim então:

"19/06/1992 - Festa de finalistas.
Neste dia terminou um ciclo nas nossas vidas. O Nunito deixava o infantário onde passou cinco anos da sua vida. O ar alegre e radiante com que recebe o testemunho contrasta com a tristeza e desespero dos primeiros três dias em que lá esteve, cinco anos antes. Sei do que falo pois o infantário era mesmo ao lado do meu local de trabalho e cabia-me a mim a tarefa de o levar e trazer.
No primeiro dia foi difícil desprendê-lo do meu pescoço. Chorava baba e ranho e partia-me o coração. Soube ao fim da tarde, quando o fui buscar, que passou o dia sem comer, triste e saudoso, soluçando sem parar. Quando ouviu a minha voz e me viu chegar, agarrou-se novamente ao meu pescoço e desabafou chorando, acho que chorámos os dois. Ele possivelmente pensou que o pesadelo teria chegado ao fim, já eu antevia o próximo ou próximos dias...Não me enganei muito.
No dia seguinte, ao virar a esquina, logo reconheceu o local e quando entrei pela porta do prédio já ele se agarrava com afinco e as lágrimas lhe corriam pela face. Não tinha como não o deixar...que tormento...uma parte de mim ficava com ele, a outra dirigia-se ao trabalho e cumpria minimamente a sua obrigação.
No terceiro dia já ficou sem oferecer resistência e progressivamente foi adquirindo confiança, amizade e gosto pelo convívio e ensinamentos.

Um bem haja às suas educadoras."

O curioso é que me lembro vivamente destas separações; no entanto, talvez por me terem marcado tanto, tinha presente que todos os dias eram assim e que não havia esse conformismo que o meu pai relata. Só para se ver como as memórias nos podem pregar partidas...


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

As Máscaras - I

Jeff apercebeu-se de que algo estava errado imediatamente após abrir a porta de casa. Ainda tinha a sua máscara colocada e as chaves na parte de fora da fechadura quando lhe chegou aquele aroma que já ocasionalmente experimentara, mas só quando vinha mais cedo do trabalho e não dera tempo à mulher para disfarçar totalmente com incenso o cheiro a sexo que infestava o seu velho apartamento. E no entanto, desta vez algo estava diferente. Eram as luzes mais baixas e uma peça de roupa cirurgicamente colocada à frente da porta e aquela música que nunca percebera nem queria perceber, mas que ela adorava. E ele hoje nem sequer chegara mais cedo; pelo contrário. Finalmente ela chegara ao ponto em que já nem se esforçara para esconder a sua infidelidade. "Natasha?", soltou, enquanto tirava a máscara; essa máscara que possuia desde que se lembrava e que com ele tinha passado por todos os bons e maus momentos.
As máscaras de todos os habitantes da colónia tinham o objectivo de serem assustadoras; todos eles viviam quase literalmente com o medo nas suas caras. Mas a sua máscara era ao mesmo tempo o rosto que melhor conhecia, salvo o seu próprio. Ou talvez não.
Pensando no que o aguardaria do outro lado da porta do quarto, focou-se nos olhos vazios daquele objecto de borracha, fibra verde e por partículas de psylium azuis fluorescentes a esvanecer e encolheu os ombros como quem diz "será mais um desses maus momentos que passamos juntos hoje?".
Ouvia barulho no quarto, ocasionalmente a voz da mulher, e só pedia que quando lá chegasse ela estivesse só. Não queria passar por uma daquelas cenas de em que toda a gente fica incomodada e desconfortável e ouvir da boca do outro gajo "Se calhar é melhor sair..." "Não não, por favor, não se incomode. Fique aí a fodê-la que eu fico só a ver, se não se importa" E qualquer que fosse a reacção do homem a este seu pedido matá-lo-ia à porrada de seguida. Matar talvez seja exagerado, mas ao menos parti-lo de forma a que nunca se esquecesse de que Jeff Barnes poderia ser corno, mas só até certo ponto. Quiçá partir-lhe os joelhos, desfazendo-lhe as rótulas uma a uma com o seu bastão da rua ou, mais directamente, esmagar-lhe os colhões - bastante simples e sempre eficaz, ou pelo menos assim presumia. Não... Se fosse quem pensava, faria algo mais memorável e destructivo. Lembrava-se de quem tinha posto na cabeça de Natasha aquela música. Para "ele", era preciso algo especial, algo que o impedisse de tocar aquela guitarra estridente, como se fosse o maior do mundo. Dar-lhe-ia cabo dos tendõezinhos no seu antebraço e deixá-lo-ia com dois pesos mortos nas pontas dos braços. Nem bater punhetas, nem sequer limpar o rabo conseguiria. E se o momento se tornasse demasiado irritativo, ganharia a lotaria, as três coisas, joelhos, colhões e cotos. E ela? Aquela puta mal agradecida, que o humilhava há já tanto tempo; afinal de contas o que a unia a ele ainda para além de um cartão de plástico matrimonial? Pior, afinal de contas o que o unia a ela? Destruí-la-ia violentamente, dilareceraria aquela pele branca, rasgando como se tecido se tratasse, um tecido tornado púrpura...
Não. Não faria nada disso, na verdade. Não era homem para esse tipo de reacções dramáticas. Ao menos se ainda amasse a mulher; aliás amava os seus lábios, só e apenas os seus lábios, mas isso não era suficiente. De certa forma estranha até lhe agradecia um pouco este tipo de imprevistos. Lembravam-no de que ainda tinha emoções, mesmo naquele mundo de escuridão e rotina. Casa, máscara, trabalho, máscara, casa.
Mas hesitava demasiado, tinha que entrar no quarto. A curiosidade era muita. Tinha apostado com a sua máscara um copo de pulley em como o filho da puta era o Henry. Já a máscara era da opinião de que era Mike. Fosse como fosse não tencionava pagar o copo à máscara, nem mesmo pela dezena de vezes que esta já lhe salvara a vida. Mas suspeitava que a máscara também não pretendia honrar o compromisso caso perdesse. Afinal de contas ela não tinha dinheiro. "E o que fazer no caso de lá estarem os dois?" Essa era nova...só mesmo a máscara, para pensar nesse tipo de coisas, agora.
Raios. "Natasha!" Nada. "Vou entrar!"
Mas ao passar a porta nada o poderia preparar para o que encontrou. Não estava mesmo mais ninguém na divisão, só aquilo. Por cima da cama desfeita, apenas um corpo nu de mulher completamente desfeito, afogado em sangue. Seria a sua esposa? Mas não conseguia ter a certeza dali. Aproximou-se ainda meio incrédulo com o que via à sua frente. A cara doce de Natasha estava vermelha como os seus cabelos naturalmente ruivos, escondida por baixo de uma camada de sangue, ainda fresco. Notou em algo bizarro. Os seus lábios haviam sido arrancados, talvez à dentada. Virou a cara, não conseguia processar o que sentia, eram emoções a mais. O resto do quarto estava sarapintado pelo que presumia terem sido esguichos de sangue projectados do agora cadáver, convertendo as paredes em quadros macabros dos quais ele era agora o infeliz e chocado apreciador.
Então, mas e as vozes? Estaria ele mesmo ali ao lado enquanto aquela monstrosidade acontecia? Se estes eram os quadros, onde estava o pintor?
Ouviu um ruído vindo de fora. A janela, à esquerda, estava aberta. Seria possível? Jeff correu e meteu a cabeça de fora do parapeito. Mas não descortinou nada. Tudo estava silencioso e escuro, como de normal. Tudo excepto aquelas duas pintas amarelas que pareciam flutuar no ar, lá ao longe. Pintas que desapareceram por trás de uma cabeleira verde que se afastava calmamente para a escuridão deixando apenas um leve rasto azul fluorescente no ar. Uma pinta em cada bochecha. Uma cabeleira verde. Era uma máscara. Não podia ser, mas era o que via. Era a sua... a sua máscara.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

arrepio

na noite escura e fria
das sombras surgia, cintilante e pura,
a doçura do toque.
mas, do choque, fugia a alvura
pela pele de galinha,
que tremia, do medo que tinha.
ficava apenas o rubor do amor.