eles virão buscar-vos brevemente...

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Nuvem 9. capítulo I

Já lá vão bastantes anos, mas sei-os de cor. Passaram exactamente trinta e quatro anos, seis meses e sete dias. Era um dia escuro, mesmo às doze horas da tarde. O bosque nessas alturas era uma visão de outro mundo, e a linha das árvores afigurava-se como que uma porta para outra dimensão, onde as regras dos homens não se aplicavam.
As crianças não se aproximavam do bosque. Acho que era na nossa aldeia o único sítio onde isso acontecia. Mas na verdade não parecia haver razão para isso. Que criança não se sente um pouco impelida mesmo face a tão primitivo receio? Mas era mais forte que a curiosidade. Nem me recordo se os meus pais até àquela altura já me proibiam de lá entrar ou se era apenas uma aura emanante daquelas copas que nos suscitava tal medo.
Só quando entrei para a escola descobri uma possível razão. Até então tinha passado praticamente toda a minha infância na minha aldeia, salvo uma deslocação a Fátima, por ocasião do acidente do meu irmão mais velho. A escola primária ficava a cerca de dez quilómetros, do outro lado do monte, sempre a subir, e curiosamente nunca lá tinha estado. Não gostava das pessoas de lá. Por altura das festas eram muito barulhentos e bebiam demasiado. Uma das vezes em que celebraram a Sra. dos Remédios na nossa aldeia, partiram a imagem da Santa e culparam a minha mãe.
Os meus pais nunca foram de deslocações e eu muito menos, até porque tinha de tomar conta dos mais pequenos. E foi não foi com pouca revolta que recebi a noticia no meu 5º aniversário, de que ainda nesse ano iria para a escola. Por essa altura indignava-me apenas com a ideia de escola. O que é que a escola pode ensinar a alguém de uma aldeia que sempre ficará numa aldeia? Mais tarde mudei de opinião enquanto me ensinavam a ler e a escrever, e a história da minha terra e do meu país. Lembro-me de que foi um momento interessante quando descobri que era natural a história repetir-se. Mas mais importante que as lições nas aulas são sem dúvida as lições com os colegas. E a mais preciosa para mim foi quando descobri que no meu bosque tinha havido uns anos antes um desastre.
Toda a gente da minha aldeia conhecia a Clotilde, da portela. Morava na casa mais afastada, mas raramente era vista. O seu marido tinha ido para França e por lá tinha ficado, suspeitava-se, com outra família. O que não sabíamos era que tinham tido um filho juntos e que esse filho tinha morrido. Aparentemente, num dia de chuva, o rapaz desaparecera. Tinha dito à mãe que ia à pesca mas quando no final desse dia a mãe, preocupada, desceu a encosta para o rio, só lá encontrou a sua cana e um ramo com três peixes espetados. Dez dias depois, com quatro dias de buscas completados, o corpo do rapaz foi encontrado no bosque, dentro de um poço. As crianças não sabiam o nome do rapaz, mas eu sabia que o apelido da Clotilde era Sereno, portanto na minha cabeça, dei-lhe o nome de Pequeno Sereno.
Não contei aos meus pais acerca do que tinha descoberto. Mas a partir desse dia, depois das aulas, sentava-me sempre na mesma pedra em frente à orla do bosque, tentando descortinar o que havia passado com o Pequeno. Conforme os anos passaram, deixei de dar tanta importância a isso, até porque tinha de ir ajudar os meus pais, agora que já tinha mais físico para a lavoura. Foi por volta dos meus onze anos que a nossa aldeia suportou uma nova mudança. Há muito que o Esteves do fundo do povo falava com orgulho da sua filha que morava em França. Porém, ninguém esperava que essa filha resolvesse deixar o marido e voltar para Portugal. Não se pense, no entanto, que voltava em dificuldades; aparentemente o Esteves falava verdade quando dizia que tinha tido sucesso no estrangeiro. Conseguira abrir uma empresa com outros empregados portugueses e estava bem na vida. Foi essa a razão porque pode trazer com ela os seus três filhos e, com eles, trouxe também mais um desastre à minha aldeia. Um ano depois, o mais velho dos três, Victor, estaria morto.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Cover us in chocolate, sell us to the neighbours, frame us on a video. 04/2011

Neste ponto da minha vida, é difícil saber o que fazer. É uma altura em que o tempo corre mais devagar, mas incidentalmente me sinto mais velho. É o momento de recuperação depois de um longo choque, é o momento do recomeço, do novo planeamento, da nova ideia de mim e dos outros, o tempo de repensar os meus sentimentos, olhando para trás, para construir o advir. Já é mais que tempo. Aliás, já me sinto assim há já algum tempo, mas parece que de cada vez que ultrapasso uma daquelas barreiras psicológicas, algo de exterior a mim acontece, como que brincando com as minhas vontades e os meus desejos e como que entro numa nova trincheira. Felizmente que tenho o meu trabalho, embora ele consista precisamente em pensar e muito sobre o que é verdadeiramente importante para mim. E para dizer a verdade, os dois projectos que tenho hoje em dia em mão, com o propósito de serem filmados, lidam com a ideia de verdade. O primeiro sobre alguém que receia ter de abdicar da sua genuinidade por descobrir que a sua mãe o quer conhecer e, na segunda, o protagonista é alguém que é constantemente usado para os caprichos de terceiros, até que as suas vontades são derrotadas pela sua própria natureza, demasiado influenciada pelas mentiras desses outros.

"...what in me is dark illumine, what is low raise and support..."

sexta-feira, 15 de abril de 2011

sempre ao longe 04/2011

Era uma rapariga. Via-a ocasionalmente quando passava por mim; quando era pequeno, ainda lhe acenei uma ou outra vez, mas ela não ligava. Era difícil ter uma relação por muito mínima que seja com alguém que está sempre a correr. Era tudo o que ela fazia. Não a via comer, dormir, parar sequer. Suponho que ela fazia tudo isso, mas no primeiro dia em que resolvi segui-la nem isso consegui ver e como a minha mãe iria ficar preocupada caso não chegasse a tempo de jantar, desisti. Era uma rapariga bonita. Eu via os rapazes a olhar para ela. Tinha ciúmes, claro, mas sabia que nenhum deles a queria verdadeiramente; e mesmo que quisessem, não me parece que conseguissem impor a sua vontade para que ela deixasse de correr. E quem quer uma mulher que esteja sempre a correr? Uns anos mais tarde, quando já conduzia, resolvi seguir a mulher. Tentei falar com ela, mas também não me respondeu. Resolvi parar o carro e correr ao seu lado. Disse-me olá, como se apenas me tivesse visto agora. Não consegui parar de olhar para o seu sorriso. E depois apercebi-me de que nunca a tinha visto sem ser a sorrir. O único sorriso verdadeiro que vi em alguém. Perguntei-lhe porque é que corria, porque é que não parava um pouco. Porque ao correr estava feliz; se parasse não estava, portanto só quando estivesse sem forças é que pararia. Depois perguntei porque é que isso a punha feliz. Ela respondeu apenas que o sítio onde se está nos esgota, a felicidade está sempre à nossa frente, e por isso ela corria para ela. Numa última pergunta, quis saber porque é que se a felicidade está sempre na ida, porque é que ela ficava nestes anos todos sempre perto de casa. Ela olhou para mim e disse que estava à espera que alguém a acompanhasse. Fiquei sem forças e tive de parar; ela continuou. Nunca mais a vi, desde então, mas tenho corrido todos os dias para ganhar forças para ir atrás.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

xenomorfos no cinema português. 04/2011

Quando ninguém nos lê há uma liberdade inerente para resolver o que se quer exprimir. O problema é quando não se antevê qualquer assunto, ideia ou conceito que mereça sequer ser referido.
Agora que me lembro, esta noite já foi a segunda em que a meio do sono acordo com uma tosse irritante, daquelas que desce às profundezas dos pulmões e os põe a arder, em troca de alguma expectoração. Mas porque é que durante o dia esta situação está controlada e é precisamente à noite, a meio de um daqueles sonos REM que misturam voo com outras fantasias menos discutíveis, mais selvagens, que o meu organismo se lembra de convulsar? Lembro-me agora de que não sou fã de perguntas sem resposta, portanto se alguém souber efectivamente uma razão para tal fenómeno, por favor indique-me qual.
Outra coisa; já que não tenho assunto interior para abordar, para além dos meus já referidos pulmões, recordo-me de ontem ter visto o programa "Os culturistas" do canal Q com o convidado especial sendo nada mais nada menos que o realizador João Botelho. Admito que não entendo a irritação daquele senhor. Não falo sequer do facto de ser um programa que aborda a cultura com humor, mas apenas porque claramente a posição anti-entretenimento dele ser tão forte e intrínseca que é impossível sequer qualquer discussão. É frustrante pensar que há pessoas em Portugal que dizem que há vários tipos de cinema, que as pessoas têm a liberdade para fazerem o que quiserem, mas depois ataca uma possível corrente comercial em Portugal. É talvez o primeiro a dizer que o cinema nasce com o entretenimento e é claramente fã do cinema de Ford e de outros autores do cinema clássico americano, mas está tão fechado à ideia do cinema como arte e vanguarda modernista que parece não ver os seus próprios filmes e acha que por incluir técnicas de outras artes dentro do seu cinema, que o poderá fazer uma obra-prima além-fronteiras. O chiaroscuro, Sr. Botelho, está ultrapassado enquanto ponto de originalidade e por si só não vale nada. Veja o "Nightwatch" do Peter Greenaway e aprenda. Mas mais que tudo, aquilo que tem de aprender é alguma modéstia; todos sabemos que já passou por muito a lidar com pessoas horríveis e corruptas do cinema português, pessoas essas que deviam estar presas há muito tempo em vez de ganharem dinheiro para os jaguares e pó de "arroz". Mas o sonho de quem fala do cinema português enquanto marasmo é porque olha para o cinema dinamarquês, japonês e coreano e vê como possível uma ligação da arte com boa história e entretenimento e sim, sonha com uma pequena indústria que o senhor, com muita razão, diz não existir. Porquê tanta irritação? Eu acho que está irritado, porque se houvesse uma indústria auto-suficiente e o ICA deixasse de existir, havia muita gente que deixaria de fazer filmes. No entanto, se o que diz acerca dos filmes portugueses saírem e serem bem vistos lá fora com resultados é verdade, sem dúvida que continuariam a ser feitos.

Ai que agradável não seria que o João Botelho lesse isto.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

faceoff. 04/2011

Dou por mim às vezes a pensar que chega a ser ridículo apercebermo-nos de que todos temos dois lados profundamente opostos ou pelo menos à primeira vista incompatíveis. Dou por mim num dia tendo discussões acerca de política ou arte, para no dia seguinte falar de futebol e do Modern Warfare (sim, o único no qual ponho letra maiúscula). A mesma coisa quando penso no valor independente do indivíduo, embora eu próprio seja comunista ou finalmente como por detrás da minha assumida dependência pela lógica, acabo por admitir acreditar no que a maioria das pessoas pensa como "destino". Sim, acredito. Não pelas grandes coisas, os grandes acontecimentos, momentos marcantes; pelo contrário. Ontem, quis comer juntamente com uma taça de morangos, um pouco de chantilly. Tinha no frigorífico uma daquelas latas altas que me ofereceram há uns tempos na rua para propagandear a marca. Já ontem sabia que o prazo de validade já estava há muito expirado, mas podia ser que o produto ainda tivesse as suas qualidades intrínsecas intactas. Mal tirei a tampa, reparei nos vestígios de bolor acoplados às paredes, mas quando olhei para a ponta da lata, no orifício de saída, assustei-me com a crosta negra espessa e compacta que se tinha formado lá. Meramente por motivos lúdicos :p, decidi ainda assim carregar no botão. E qual não foi o meu espanto quando o chantilly saiu branquinho de dentro da lata. Toquei com o meu dedo na substância e levei-a à boca. Parecia óptimo. Depois olhei para a data de validade. Dizia 13/09. Depois de me rir interiormente pensei para comigo: "Isto de certeza que está estragado" e deitei a lata fora. Quem por ventura ler isto sem fazer ideia desta data, pode acreditar que era algo importante para mim até há pouco tempo. Existe um destino, mas nunca faremos ideia do porquê destas coincidências.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

demasiado comprido e tenho sono. bear with me 04/2011

Não consigo descortinar se será positivo ou não o facto de me dar prazer estar à frente do computador a pensar em coisas já pensadas e escrever coisas já escritas. Como eu detesto repetir-me. Mas actualmente é capaz de ser a única coisa que a muito curto-prazo me faz sentir uma possível ilusão de utilidade ao criar. Sim, criar pode ser uma palavra demasiado forte, chamemos-lhe de traduzir uma linha de pensamento. No fundo não estou a criar nada. Mas às vezes os nossos atributos e desejos têm uma vontade própria. Eu próprio não quero estar a escrever agora e sentir o mínimo de prazer com isso, trazendo a quem, coitado, tem a paciência e a boa vontade de ler isto, ainda mais tristeza e desilusão, para além de um enorme aborrecimento e ódio pela inutilidade que algumas palavras podem atingir. Para esses, deixo então um pequeno conto.
Era uma vez uma pequena rapariga. Desde cedo que esta rapariga tinha um enorme gosto. Adorava dizer às pessoas o quanto gostava de subir coisas, fossem árvores, rochedos, casas. Andava sempre com uma corda atrás, na qual fazia um laço e a qual atirava, prendendo-a de forma exacta e apertada aos objectos que achava capazes de a ajudar a subir. Que momento maravilhoso para ela aquele em que o nó do laço se deslocava e forçava a corda a ficar tensa nas suas mãos! E que êxtase era subir por essa corda! Um dia, ao tentar subir uma encosta mais íngreme, sem pontos para onde pudesse atirar a corda, e já depois de muito tempo amuada com a decisão de ter de regressar, a rapariga acaba por ver uma cabra selvagem. Havia algumas por aqueles lados... Vivem precisamente nestas encostas, e sobem e descem-nas diariamente. A cabra, quando a vê, começa apressadamente a subir a encosta. Neste momento, sem pensar, a rapariga atira o seu laço com toda a sua força e consegue prendê-lo ao pescoço da cabra. Que maravilha! Aí estava a corda tensa, mais uma vez, e ela a subir a escarpa, sem se esforçar, meramente a ser puxada pela cabra até ao cimo do monte. Chegada a cima, a cabra desapareceu. Em vez dela, uma presença semi-trasparente era o que agora se aproximava. Essa presença disse-lhe que lhe daria algo ligado à coisa que ela mais gostava. No dia seguinte, a rapariga acorda com uma corda presa a cada dedo da sua mão. Cada uma com um laço na ponta. A rapariga fica felicíssima. Regressa à encosta e vê mais algumas cabras. Sem sequer pensar, as cordas lançam-se aos pescoços das cabras, que desatam a subir a encosta e a rapariga, mais uma vez fica envolta no que é para si a maior sensação do mundo. Mas desta vez a rapariga não se deixa ir. Prefere sentir ao pormenor o quanto a corda estica e depois, sim, quando já não lhe restam forças, as cabras levam-na pelo ar. No dia seguinte, a rapariga decide ir por outro caminho, por onde nunca foi. Para sua desilusão, não encontrou nada que subir, era tudo plano. Começa a chover. A rapariga vê ao longe algo, um grupo de animais. Ao aproximar-se, vê que são cavalos. Mais uma vez os seus dez dedos esticam-se com um rápido reflexo para eles, e prendem-se aos seus pescoços através das cordas. Durante todo o dia a rapariga foi pelo ar, puxada pelos cavalos, e nunca tinha sentido tremenda felicidade.
No dia seguinte, a rapariga ficou doente. A sua mãe ficou a tratar dela e ia levar ocasionalmente comida ao seu quarto e medir-lhe a temperatura na testa. A rapariga entretanto dormia. Sonhava com tudo o que lhe tinha acontecido em três dias e ansiava pelo futuro. Revia a primeira cabra, como ela a puxava pela encosta, no esforço que fazia. Mas a imagem que via mais era a do pescoço do animal, com a corda bem esticada em redor e ligada às suas mãos; depois os pescoços das outras cabras ligados aos seus dedos e o quão tensas as cordas estavam enquanto não se deixava ir; depois os cavalos, todo aquele poder preso a si nos seus dedos; depois revia um tronco de uma árvore ao qual atirou o laço, uns dias antes e ouvia o som do nó a prender-se; e depois uma pedra saída de uma parede...revia todos os sítios onde prendeu as cordas. Nesse momento acordou, sentindo a necessidade de prender-se a outra coisa. Mas ao seu lado já estava a sua mãe, caída, com as dez cordas ao seu pescoço, morta. Foi nesse momento que a rapariga percebeu que nunca tinha gostado de subir coisas, gostava apenas de as apertar.
E tu, tens a certeza do que gostas e queres fazer ou és apenas uma rapariguinha sádica?

num dia, um louco alegre. 04/2011

Já tentei proporcionar aos meus abstractos leitores uma espécie de distorção de ocorrências mediáticas do quotidiano, de certa forma resultando sempre não num artigo de opinião, mas numa clara divagação para fora dos trâmites dos referentes e para dentro da minha pseudo intelectualidade assumidamente barata e mais que isso inútil. Restava-me portanto quedar-me pelos pequenos artigos enigmáticos, que poupariam não só o meu tempo e dos leitores, mas o espaço de leitura do meu ainda lutador blogue. Se há algo que nunca farei é separar uns dos outros. Que a tristeza coabite com a alegria, a profundidade com a superficialidade, esse é o meu lema. Porque o apocalipse é feito dos dois, de altos e baixos, liberdade e de limitação. Têm dúvidas? Como não saberão vocês que me lêem que o fim dos dias está mais próximo do que se espera? Desastres naturais, profecias antigas, guerras desnecessárias...quanto tempo mais poderá o armagedão ser adiado quando há guerras que são criadas como se compra pastilhas elásticas num quiosque, porque se tem um "sweet tooth". A tristeza é que a actual guerra na Líbia é claramente a mais ridícula guerra mediatizada a que assisti. Se é legítima? Não mais nem menos que todas as outras. Mas é mais uma guerra sem combates, com avanços e recuos e jogos de artilharia, em que aparentemente a maioria dos mortos é civil e vítima de bombardeamentos azarados. Se a realidade fosse aquilo que se vê na televisão, diria que um segmento expressivo da humanidade enlouqueceu; que nesse mundo não há respeito, não há palavra, não há honra, não há já sequer instinto de sobrevivência. Está tudo com vontade de morrer, no mundo da televisão. E morre-se precisamente pela liberdade, apesar de não se falar de mortes na linha da frente, pelo menos naquelas que se esperaria de uma guerra civil.
Generalizando a forma como rapidamente as guerras brotam nesta terra de gente é que rapidamente chego à conclusão de que não durará muito até que alguém se lembre que tem um botão na sua escrivaninha, um bem grande e vermelho. E quando isso acontecer, já não haverá retorno. Não me parece que as pessoas têm a noção do poder destrutivo a curto, médio e longo prazo, de uma arma nuclear. No entanto, está tudo preocupado com a situação no Japão, comparada rapidamente com a de Chernobyl.
Mas ninguém parece antever esse alguém que se lembra do botão vermelho. No dia em que as cidades e florestas se transformarão em desertos, e em que os desertos se converterão no destino de muitos. Se acham que a morte poderá trazer a liberdade, então aclamem esse dia, rezem para que esses líderes sejam ainda menos dignos de governar que aquilo que aparentam. Aí está, agora sem dúvidas, a alegria no apocalipse e o sabor agri-doce, que no fundo é apenas e só amargo. Sim, na realidade da televisão, o mundo já teria morrido. Não pensem nisto, durmam bem.

"...what in me is dark illumine, what is low raise and support..."

sábado, 2 de abril de 2011

noite amarela. 03/2011

O rapaz pára de escrever. Esgotou tudo o que tinha por hoje, os seus dedos encontram-se vazios depois de mais de três horas a bater num teclado. Apesar de tudo, o resultado não foi mais de uma página. Fica a pensar qual terá sido o tempo total que terá gasto no seu anterior e primeiro livro. Isso dá-lhe vontade de escrever mais. Mas onde e para quê? Não. Amanhã será outro dia. Por agora talvez seja melhor tentar descansar. "Tentar" porque usualmente não fica mais de quatro horas na cama, apenas duas delas a dormir. Poderá ser que as outras pessoas não pensem tanto quanto ele? Ou é o seu cérebro que anda cinco vezes mais veloz que o dos outros. Depois pensa também nas consequências disso. Com os seus dezassete anos, fica já com receio de uma morte antecipada, que os seus nervos não durem mais de um quarto de século. Que pavor de envelhecer. É já depois de desligar o seu pequeno portátil e de se deitar na cama que reflecte agora sobre o seu futuro. Escrever, escrever, escrever, escrever, escrever, escrever. Haverá mais que isso na sua vida? Pois claro que sim, que pergunta absurda. Há o ler o que escreveu, para começar, e há o ligar e o desligar do computador, o abrir e o fechar do programa e o dormir, evidentemente. E há também a escola e os conhecidos, os seus amigos e os seu pai. E há o mundo. O dia triste e a noite que passa sempre no mesmo sítio. A noite que vê amarela desde a sua janela. Desde quando é que ela é assim? Um cadáver. Assassinada pelas luzes. E ainda se interroga do porquê de não conseguir dormir. Poderá ser que as outras pessoas não pensem tanto quanto ele? E se ele não acordar, quem pensará nas coisas então? Nas nódoas de iogurte ressequido no chão da sua secretária e no verniz estalado por baixo delas, na textura das suas calças de pijama de polar, agora já cheias de borbotos, que alguém mais impaciente já teria tentado arrancar. No mosquito que o chateia nas noites de Verão e na borboleta que o segue, de asas cor de laranja e azuis, e o arranca do ar, consumindo-o e assim salvando o rapaz do seu irritante zumbido. Mas que borboleta é esta, que parece feita de papel, presa entre os dedos de uma rapariga. Que é que ela quer, salvá-lo ou tê-lo só para ela? Destruí-lo ela própria, essa cruel borboleta, pior que o pior dos mosquitos...? Que alucinação. Ele pensa compreender que sonha, que detém o controlo, e corta os dedos que seguram a borboleta, e prende-a entre o seu anterior e primeiro livro, no capítulo nono. E em que doce sonho se converterá agora esta noite. Um sonho em que se levanta e escreve, mas escreve sem pensar.
Sete horas depois acordará, sentar-se-à na sua cadeira em frente à secretária e escreverá. Nesse dia conseguirá chegar às oito páginas.E mais tarde, um dia, não escreverá mais. Morrerá antes de completar vinte anos, sem ter acabado o seu livro.