Jeff apercebeu-se de que algo estava errado
imediatamente após abrir a porta de casa. Ainda tinha a sua máscara colocada e
as chaves na parte de fora da fechadura quando lhe chegou aquele aroma que já
ocasionalmente experimentara, mas só quando vinha mais cedo do trabalho e não
dera tempo à mulher para disfarçar totalmente com incenso o cheiro a sexo que infestava
o seu velho apartamento. E no entanto, desta vez algo estava diferente. Eram as
luzes mais baixas e uma peça de roupa cirurgicamente colocada à frente da porta
e aquela música que nunca percebera nem queria perceber, mas que ela adorava. E
ele hoje nem sequer chegara mais cedo; pelo contrário. Finalmente ela chegara
ao ponto em que já nem se esforçara para esconder a sua infidelidade. "Natasha?",
soltou, enquanto tirava a máscara; essa máscara que possuia desde que se
lembrava e que com ele tinha passado por todos os bons e maus momentos.
As máscaras de todos os habitantes da colónia
tinham o objectivo de serem assustadoras; todos eles viviam quase literalmente
com o medo nas suas caras. Mas a sua máscara era ao mesmo tempo o rosto que
melhor conhecia, salvo o seu próprio. Ou talvez não.
Pensando no que o aguardaria do outro lado da
porta do quarto, focou-se nos olhos vazios daquele objecto de borracha, fibra
verde e por partículas de psylium azuis fluorescentes a esvanecer e encolheu os
ombros como quem diz "será mais um desses maus momentos que passamos
juntos hoje?".
Ouvia barulho no quarto, ocasionalmente a voz da
mulher, e só pedia que quando lá chegasse ela estivesse só. Não queria passar
por uma daquelas cenas de em que toda a gente fica incomodada e desconfortável
e ouvir da boca do outro gajo "Se calhar é melhor sair..." "Não
não, por favor, não se incomode. Fique aí a fodê-la que eu fico só a ver, se
não se importa" E qualquer que fosse a reacção do homem a este seu pedido
matá-lo-ia à porrada de seguida. Matar talvez seja exagerado, mas ao menos
parti-lo de forma a que nunca se esquecesse de que Jeff Barnes poderia ser
corno, mas só até certo ponto. Quiçá partir-lhe os joelhos, desfazendo-lhe as
rótulas uma a uma com o seu bastão da rua ou, mais directamente, esmagar-lhe os
colhões - bastante simples e sempre eficaz, ou pelo menos assim presumia.
Não... Se fosse quem pensava, faria algo mais memorável e destructivo.
Lembrava-se de quem tinha posto na cabeça de Natasha aquela música. Para
"ele", era preciso algo especial, algo que o impedisse de tocar
aquela guitarra estridente, como se fosse o maior do mundo. Dar-lhe-ia cabo dos
tendõezinhos no seu antebraço e deixá-lo-ia com dois pesos mortos nas pontas
dos braços. Nem bater punhetas, nem sequer limpar o rabo conseguiria. E se o
momento se tornasse demasiado irritativo, ganharia a lotaria, as três coisas,
joelhos, colhões e cotos. E ela? Aquela puta mal agradecida, que o humilhava há
já tanto tempo; afinal de contas o que a unia a ele ainda para além de um
cartão de plástico matrimonial? Pior, afinal de contas o que o unia a ela? Destruí-la-ia
violentamente, dilareceraria aquela pele branca, rasgando como se tecido se
tratasse, um tecido tornado púrpura...
Não. Não faria nada disso, na verdade. Não era
homem para esse tipo de reacções dramáticas. Ao menos se ainda amasse a mulher;
aliás amava os seus lábios, só e apenas os seus lábios, mas isso não era
suficiente. De certa forma estranha até lhe agradecia um pouco este tipo de
imprevistos. Lembravam-no de que ainda tinha emoções, mesmo naquele mundo de
escuridão e rotina. Casa, máscara, trabalho, máscara, casa.
Mas hesitava demasiado, tinha que entrar no
quarto. A curiosidade era muita. Tinha apostado com a sua máscara um copo de
pulley em como o filho da puta era o Henry. Já a máscara era da opinião de que
era Mike. Fosse como fosse não tencionava pagar o copo à máscara, nem mesmo
pela dezena de vezes que esta já lhe salvara a vida. Mas suspeitava que a
máscara também não pretendia honrar o compromisso caso perdesse. Afinal de
contas ela não tinha dinheiro. "E o que fazer no caso de lá estarem os
dois?" Essa era nova...só mesmo a máscara, para pensar nesse tipo de
coisas, agora.
Raios. "Natasha!" Nada. "Vou
entrar!"
Mas ao passar a porta nada o poderia preparar para
o que encontrou. Não estava mesmo mais ninguém na divisão, só aquilo. Por cima
da cama desfeita, apenas um corpo nu de mulher completamente desfeito, afogado em sangue. Seria a sua
esposa? Mas não conseguia ter a certeza dali. Aproximou-se ainda meio incrédulo
com o que via à sua frente. A cara doce de Natasha estava vermelha como os seus
cabelos naturalmente ruivos, escondida por baixo de uma camada de sangue, ainda
fresco. Notou em algo bizarro. Os seus lábios haviam sido arrancados, talvez à
dentada. Virou a cara, não conseguia processar o que sentia, eram emoções a
mais. O resto do quarto estava sarapintado pelo que presumia terem sido
esguichos de sangue projectados do agora cadáver, convertendo as paredes em
quadros macabros dos quais ele era agora o infeliz e chocado apreciador.
Então, mas e as vozes? Estaria ele mesmo ali ao
lado enquanto aquela monstrosidade acontecia? Se estes eram os quadros, onde
estava o pintor?
Ouviu um ruído vindo de fora. A janela, à
esquerda, estava aberta. Seria possível? Jeff correu e meteu a cabeça de fora
do parapeito. Mas não descortinou nada. Tudo estava silencioso e escuro, como
de normal. Tudo excepto aquelas duas pintas amarelas que pareciam flutuar no
ar, lá ao longe. Pintas que desapareceram por trás de uma cabeleira verde que
se afastava calmamente para a escuridão deixando apenas um leve rasto azul
fluorescente no ar. Uma pinta em cada bochecha. Uma cabeleira verde. Era uma
máscara. Não podia ser, mas era o que via. Era a sua... a sua máscara.
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