eles virão buscar-vos brevemente...

sábado, 26 de janeiro de 2013

As Máscaras - II

O detective Cyrus Yoshikawa nem se esforçava para impedir que da sua mão gasta e dura caísse algum dos amendoins salgados que havia retirado da tigela mais nojenta das colónias lunares. Sentava-se ao balcão do seu bar do costume, o sujo e mal frequentado Toto. Sempre se entendera com Tomaz, o dono, desde o dia em que impedira um homicídio no local, embora não se orgulhasse de ter pago com o preço de outro homicídio. 
Nesse dia, havia já treze anos, recebera uma chamada da esquadra a altas horas da noite e, como ficava perto da sua área de residência, resolveu tomar ele conta da ocorrência. Ainda do exterior do bar verificara logo pela gritaria que não era uma mera discussão. Parecia tratar-se mais de uma espécie de ajuste de contas. Entrou com um pontapé na porta e impôs a sua presença ordenando ao suspeito, uma figura de arma em riste, que ficasse quieto e largasse a sua arma para o chão. "Não é preciso que ninguém se magoe!". Mas o homem parecia hesitante, não sabendo o que fazer. Tinha a sua máscara colocada, portanto era impossível saber a sua verdadeira expressão para lá daquela que se via, monstruosa. Mas Cyrus sentia o seu medo através dos movimentos que fazia com o corpo. "Deite a arma para o chão! Já!". Nesse momento o nervoso suspeito pareceu resolver-se, quem sabe antevendo a humilhação da prisão, e virou a arma, uma espécie de revólver, um tipo de arma que não se via há mais de trinta anos, na direcção de Tomaz, atrás do balcão.
Cyrus não era já um polícia iniciante. Há muito que não congelava em situações destas. Não era como da primeira vez que tivera de disparar sobre alguém... Ele aprendia com os erros e errava já muito pouco, principalmente com a sua Tenten9, a arma de serviço de todos os polícias daquela pequena cidade. E pronto, dois relâmpagos brilhando pelo cano da arma na direcção do peito e um terceiro que furou a máscara do bandido, caindo desamparado no chão.
Depois de confirmar que estava incapacitado, Cyrus dirigiu-se ao corpo do suspeito, retirou-lhe a máscara, e para sua surpresa verificou que era apenas um miúdo. Um miúdo da idade que Josh, o seu filho, teria. Não evitou sentir-se destroçado pelo que fizera, enquanto olhava para os olhos ausentes e vítreos do rapaz e para o sangue espesso, provavelmente misturado com massa cerebral, a escorrer-lhe de um orifício no crâneo. Da máscara, a tez azulada do psylium ia desaparecendo, substituindo o horrível e falso rosto pela borracha baça e inofensiva. Ao mesmo tempo, Tomaz agradecia-lhe por lhe ter salvo a vida, agarrado à cruz no seu peito, benzendo-se interminavelmente, em seu nome e da sua família, mãe, mulher e todos os filhos, até o pequenito Aran.
Entretanto tornara-se amigo de Tomaz e aparecia todas as semanas, às vezes mais que um dia, no Toto. Era hábito pedir um copo de pulley e ficar meio ausente pensando em todas as tristezas da sua vida.
Hoje, porém, ia já no quarto copo. "Vinte anos...", murmurava para ele próprio. Ao seu lado repousava a sua máscara. Já não aguentava usá-la...aquela tez pálida de pele, as presas compridas e os círculos amarelos nos olhos, tudo o levava ao desespero quando pensava demasiado nisso. Contava os dias virtuais que lhe restavam para a sua reforma e respectiva saída da cidade. Todos os colegas que haviam saído para Rosaprima, a ilha dos sonhos, lhe contavam maravilhas acerca do sítio. Apenas faltava o sol, de resto era fabuloso. Desde que não tivesse de usar a puta da máscara até podia ir para o inferno, mas praia e descanso eram um bónus que ele agradecia. E sol, já não o havia em lado nenhum.
Primeiro, no entanto, tinha de se reformar e para isso tinha que resolver mais dois casos. Apenas mais dois casos. Não achava que pudesse aguentar muito mais tempo daquilo. Ter de estar ali a fingir-se de sério. Precisava mesmo da puta da reforma? Da praia e de regalar a vista com as solteiras de Rosaprima a passear-se na avenida marginal? Tudo merdas que lhe tinham metido na cabeça! E depois nunca se sabe quanto tempo demora a resolver o caso. Uns bons anos antes tinha havido um que lhe dera uma trabalheira, um triplo homicídio sem quaisquer pistas. Um verdadeiro quebra-cabeças que acabou por ser arquivado, depois de dois anos de investigação. Olhando para trás, era um dos dois casos que lhe tinham ficado atravessados como espinhas na garganta. Pois bem, se o próximo caso demorasse tanto tempo, estava tudo fodido. Se calhar era altura de mandar tudo às urtigas. Mandá-los a todos para donde vieram. Neste mundo toda a inocência tinha sido tapada com uma pazada de merda e era dessa escuridão decomposta e malcheirosa que Cyrus queria sair, de uma maneira ou de outra. Vivia a um pequeno instante da loucura mas agora deixava-se levar. Foda-se, que miséria! Sentia a coronha da sua Tenten e olhava à sua volta por onde começar. "Vai tudo pó caralho!" repetia na sua cabeça. Era a contagem decrescente 3, 2, 1...
"Yoshi! Telefone para ti."
"Agora?! Caralho, será ela outra vez?" pensava para si. Um telefonema por ano já era suficiente. Dois no mesmo dia era insuportável. Ao levantar-se para ir ao telefone ainda sentia em si olhares de todos aqueles criminosos de meia tigela, pessoas que não lhe diziam respeito. Afinal de contas era um detective de Homicídios, mas nem os treze anos de intimidade no bar deixavam os habituais clientes descansados. E ele sentia-se bem com isso. Tomaz era quem lhe interessava ali.
Pegou no auscultador. "Detective? Aqui é Danza. Temos um caso”. Óptimo, reflectiu Cyrus. A viagem final começava agora. Depois deste a reforma é fácil. "Muito bem, Ed. Onde queres que vá ter?" "Área Oeste, praça 3. Temos agentes à porta. Eles depois indicam-lhe o caminho."
Olhava para Tomaz. O resto teria de esperar, mas as probabilidades eram que não por muito tempo. "Tomaz, dá-me uma garrafa de água, por favor." Decidiu ir a correr. Saiu do bar ainda com a máscara mal colocada, pois, ao mesmo tempo que corria, chupava da garrafa enormes quantidades de água. Tinha de tirar do sistema aquele àlcool todo. Apresentar-se ao serviço naquele estado dar-lhe-ia no mínimo uma suspensão, mas se o chefe decidisse ser rigoroso bem que podia dizer adeus a Rosaprima.
Nas ruas, àquela hora, não se via ninguém. Eram quatro horas da manhã e nem o facto de não haver sol, e portanto diferença prática entre dia e noite, impedia que no Quartier as pessoas estivessem a casa. Aliás, naquele bairro quem sai à rua em horário nocturno sabia que se arriscava a desaparecer, mesmo protegidos com as respectivas máscaras e bastões de rua.
Entretanto à volta do Detective os rugidos iam-se aproximando, mas Cyrus não os ouvia. Estava com a cabeça noutro lugar, pensando em Josh, o seu filho, e Marco, o miúdo que matara. Já largara a garrafa há vinte metros, mas metade da sua cabeça ainda estava a descoberto. Avançava pelas ruas rapidamente, devido aos sensores das máscaras, que lhe permitiam ver no escuro, transformando num dia acinzentado o breu que envolvia todo o satélite. No entanto, qualquer o tipo de Galina que o perseguia, estaria a fazê-lo cerca de três vezes mais rápido que um humano.
Foi por sorte que uma das esquinas que Cyrus tinha um edifício com vidros espelhados. E ainda assim demorou alguns momentos até se aperceber de que se tratava do seu reflexo e da gravidade da situação em que estava metido. O circuito de psylium da máscara só funciona em pleno contacto com o rosto. Eles já estavam demasiado perto talvez. Agora sim ouvia atrás dele o raspar intimidante das suas garras compridas na poeira. Fechando os olhos, puxou a máscara para baixo, virando-se na direcção dos ruídos o mais rápido que pôde, sussurrando em agonia “Deus, foda-se”.
Ao adaptar-se à sua face as partículas de psylium reagiram, brilhando efusivamente, dando cor e padrão à máscara. Soaram guinchos lancinantes, uivos dolorosos de desespero... E quando voltou a abrir os olhos estava já sozinho. Ficou quieto ainda a digerir o que se tinha passado. "Estúpido...muito estúpido...". Mais uma vez a sua máscara fazia aquilo para que tinha sido criada, mas Cyrus detestava ter de depender dela desta forma.
No terceiro andar do prédio o sargento Edouard Danza tirava fotografias ao cadáver, quando Cyrus chegou ao pé dele. "Foda-se! Que aconteceu aqui?" O quarto ainda estava na mesma, apenas o encarnado era menos vivo e não escorregava, secado com o tempo. "Natasha Barnes. Idade 41." O detective não conseguia impedir sentir um desconforto ao ver o delgado corpo nú da víctima. Era uma bela mulher. Quem a matou deve ter-se divertido muito a estragá-la. "Crime passional é o nosso melhor palpite. Esta violência...Aparentemente não falta nada, a porta também não foi arrombada." Cyrus ia observando o quarto, caminhando pela cena do crime enquanto ouvia as explicações de Danza. "O marido diz que quando chegou a casa já encontrou a mulher assim e que viu um suspeito a fugir na rua." Cyrus parou à frente de Danza. Era o tipo de caso mais frequente, embora nunca tivesse visto um tão sádico. Um gajo passa-se e mata a mulher. Mas ele gostava de ficar com estes casos, antes a ele que a outro detective. "Já levaram para a esquadra esse filho da puta?"

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