O detective Cyrus Yoshikawa
nem se esforçava para impedir que da sua mão gasta e dura caísse algum dos
amendoins salgados que havia retirado da tigela mais nojenta das colónias
lunares. Sentava-se ao balcão do seu bar do costume, o sujo e mal frequentado
Toto. Sempre se entendera com Tomaz, o dono, desde o dia em que impedira um
homicídio no local, embora não se orgulhasse de ter pago com o preço de outro
homicídio.
Nesse dia, havia já treze
anos, recebera uma chamada da esquadra a altas horas da noite e, como ficava
perto da sua área de residência, resolveu tomar ele conta da ocorrência. Ainda
do exterior do bar verificara logo pela gritaria que não era uma mera
discussão. Parecia tratar-se mais de uma espécie de ajuste de contas. Entrou
com um pontapé na porta e impôs a sua presença ordenando ao suspeito, uma
figura de arma em riste, que ficasse quieto e largasse a sua arma para o chão.
"Não é preciso que ninguém se magoe!". Mas o homem parecia hesitante,
não sabendo o que fazer. Tinha a sua máscara colocada, portanto era impossível
saber a sua verdadeira expressão para lá daquela que se via, monstruosa. Mas
Cyrus sentia o seu medo através dos movimentos que fazia com o corpo.
"Deite a arma para o chão! Já!". Nesse momento o nervoso suspeito
pareceu resolver-se, quem sabe antevendo a humilhação da prisão, e virou a
arma, uma espécie de revólver, um tipo de arma que não se via há mais de trinta
anos, na direcção de Tomaz, atrás do balcão.
Cyrus não era já um polícia
iniciante. Há muito que não congelava em situações destas. Não era como da
primeira vez que tivera de disparar sobre alguém... Ele aprendia com os erros e
errava já muito pouco, principalmente com a sua Tenten9, a arma de serviço de
todos os polícias daquela pequena cidade. E pronto, dois relâmpagos brilhando
pelo cano da arma na direcção do peito e um terceiro que furou a máscara do
bandido, caindo desamparado no chão.
Depois de confirmar que estava
incapacitado, Cyrus dirigiu-se ao corpo do suspeito, retirou-lhe a máscara, e
para sua surpresa verificou que era apenas um miúdo. Um miúdo da idade que
Josh, o seu filho, teria. Não evitou sentir-se destroçado pelo que fizera,
enquanto olhava para os olhos ausentes e vítreos do rapaz e para o sangue
espesso, provavelmente misturado com massa cerebral, a escorrer-lhe de um
orifício no crâneo. Da máscara, a tez azulada do psylium ia desaparecendo,
substituindo o horrível e falso rosto pela borracha baça e inofensiva. Ao mesmo
tempo, Tomaz agradecia-lhe por lhe ter salvo a vida, agarrado à cruz no seu
peito, benzendo-se interminavelmente, em seu nome e da sua família, mãe, mulher
e todos os filhos, até o pequenito Aran.
Entretanto tornara-se amigo de Tomaz e aparecia
todas as semanas, às vezes mais que um dia, no Toto. Era hábito pedir um copo
de pulley e ficar meio ausente pensando em todas as tristezas da sua vida.
Hoje, porém, ia já no quarto copo. "Vinte
anos...", murmurava para ele próprio. Ao seu lado repousava a sua máscara.
Já não aguentava usá-la...aquela tez pálida de pele, as presas compridas e os
círculos amarelos nos olhos, tudo o levava ao desespero quando pensava
demasiado nisso. Contava os dias virtuais que lhe restavam para a sua reforma e
respectiva saída da cidade. Todos os colegas que haviam saído para Rosaprima, a
ilha dos sonhos, lhe contavam maravilhas acerca do sítio. Apenas faltava o sol,
de resto era fabuloso. Desde que não tivesse de usar a puta da máscara até
podia ir para o inferno, mas praia e descanso eram um bónus que ele agradecia.
E sol, já não o havia em lado nenhum.
Primeiro, no entanto, tinha de se reformar e para
isso tinha que resolver mais dois casos. Apenas mais dois casos. Não achava que
pudesse aguentar muito mais tempo daquilo. Ter de estar ali a fingir-se de
sério. Precisava mesmo da puta da reforma? Da praia e de regalar a vista com as
solteiras de Rosaprima a passear-se na avenida marginal? Tudo merdas que lhe
tinham metido na cabeça! E depois nunca se sabe quanto tempo demora a resolver
o caso. Uns bons anos antes tinha havido um que lhe dera uma trabalheira, um
triplo homicídio sem quaisquer pistas. Um verdadeiro quebra-cabeças que acabou
por ser arquivado, depois de dois anos de investigação. Olhando para trás, era
um dos dois casos que lhe tinham ficado atravessados como espinhas na garganta.
Pois bem, se o próximo caso demorasse tanto tempo, estava tudo fodido. Se
calhar era altura de mandar tudo às urtigas. Mandá-los a todos para donde
vieram. Neste mundo toda a inocência tinha sido tapada com uma pazada de merda
e era dessa escuridão decomposta e malcheirosa que Cyrus queria sair, de uma
maneira ou de outra. Vivia a um pequeno instante da loucura mas agora
deixava-se levar. Foda-se, que miséria! Sentia a coronha da sua Tenten e olhava
à sua volta por onde começar. "Vai tudo pó caralho!" repetia na sua
cabeça. Era a contagem decrescente 3, 2, 1...
"Yoshi! Telefone para ti."
"Agora?! Caralho, será ela outra vez?"
pensava para si. Um telefonema por ano já era suficiente. Dois no mesmo dia era
insuportável. Ao levantar-se para ir ao telefone ainda sentia em si olhares de
todos aqueles criminosos de meia tigela, pessoas que não lhe diziam respeito.
Afinal de contas era um detective de Homicídios, mas nem os treze anos de
intimidade no bar deixavam os habituais clientes descansados. E ele sentia-se
bem com isso. Tomaz era quem lhe interessava ali.
Pegou no auscultador. "Detective? Aqui é
Danza. Temos um caso”. Óptimo, reflectiu Cyrus. A viagem final começava agora. Depois
deste a reforma é fácil. "Muito bem, Ed. Onde queres que vá ter?"
"Área Oeste, praça 3. Temos agentes à porta. Eles depois indicam-lhe o
caminho."
Olhava para Tomaz. O resto teria de esperar, mas as
probabilidades eram que não por muito tempo. "Tomaz, dá-me uma garrafa de
água, por favor." Decidiu ir a correr. Saiu do bar ainda com a máscara mal
colocada, pois, ao mesmo tempo que corria, chupava da garrafa enormes
quantidades de água. Tinha de tirar do sistema aquele àlcool todo.
Apresentar-se ao serviço naquele estado dar-lhe-ia no mínimo uma suspensão, mas
se o chefe decidisse ser rigoroso bem que podia dizer adeus a Rosaprima.
Nas ruas, àquela hora, não se via ninguém. Eram
quatro horas da manhã e nem o facto de não haver sol, e portanto diferença
prática entre dia e noite, impedia que no Quartier as pessoas estivessem a
casa. Aliás, naquele bairro quem sai à rua em horário nocturno sabia que se
arriscava a desaparecer, mesmo protegidos com as respectivas máscaras e bastões
de rua.
Entretanto à volta do Detective os rugidos iam-se
aproximando, mas Cyrus não os ouvia. Estava com a cabeça noutro lugar, pensando
em Josh, o seu filho, e Marco, o miúdo que matara. Já largara a garrafa há
vinte metros, mas metade da sua cabeça ainda estava a descoberto. Avançava
pelas ruas rapidamente, devido aos sensores das máscaras, que lhe permitiam ver
no escuro, transformando num dia acinzentado o breu que envolvia todo o
satélite. No entanto, qualquer o tipo de Galina que o perseguia, estaria a fazê-lo
cerca de três vezes mais rápido que um humano.
Foi por sorte que uma das esquinas que Cyrus tinha
um edifício com vidros espelhados. E ainda assim demorou alguns momentos até se
aperceber de que se tratava do seu reflexo e da gravidade da situação em que
estava metido. O circuito de psylium da máscara só funciona em pleno contacto
com o rosto. Eles já estavam demasiado perto talvez. Agora sim ouvia atrás dele
o raspar intimidante das suas garras compridas na poeira. Fechando os olhos,
puxou a máscara para baixo, virando-se na direcção dos ruídos o mais rápido que
pôde, sussurrando em agonia “Deus, foda-se”.
Ao adaptar-se à sua face as partículas de psylium
reagiram, brilhando efusivamente, dando cor e padrão à máscara. Soaram guinchos
lancinantes, uivos dolorosos de desespero... E quando voltou a abrir os olhos
estava já sozinho. Ficou quieto ainda a digerir o que se tinha passado.
"Estúpido...muito estúpido...". Mais uma vez a sua máscara fazia
aquilo para que tinha sido criada, mas Cyrus detestava ter de depender dela
desta forma.
No terceiro andar do prédio o sargento Edouard
Danza tirava fotografias ao cadáver, quando Cyrus chegou ao pé dele.
"Foda-se! Que aconteceu aqui?" O quarto ainda estava na mesma, apenas
o encarnado era menos vivo e não escorregava, secado com o tempo. "Natasha
Barnes. Idade 41." O detective não conseguia impedir sentir um desconforto
ao ver o delgado corpo nú da víctima. Era uma bela mulher. Quem a matou deve
ter-se divertido muito a estragá-la. "Crime passional é o nosso melhor
palpite. Esta violência...Aparentemente não falta nada, a porta também não foi
arrombada." Cyrus ia observando o quarto, caminhando pela cena do crime
enquanto ouvia as explicações de Danza. "O marido diz que quando chegou a
casa já encontrou a mulher assim e que viu um suspeito a fugir na rua."
Cyrus parou à frente de Danza. Era o tipo de caso mais frequente, embora nunca
tivesse visto um tão sádico. Um gajo passa-se e mata a mulher. Mas ele gostava
de ficar com estes casos, antes a ele que a outro detective. "Já
levaram para a esquadra esse filho da puta?"